Trabalho produzido em co-autoria. Participação de: Albert Azevedo, Bruno Flávio, Fabrício Fraga, Osmário Xavier e Ronan Freitas. Edição: Fabrício Fraga.
INTRODUÇÃO
O presente estudo consiste de um breve estudo
introdutório à Primeira Epístola do Apóstolo Pedro. O objetivo desta pesquisa é
fornecer diretrizes básicas para o estudo e interpretação da Epístola à luz de
informações literárias, contextuais e teológicas.
A ampliação das linhas de estudo se dá através da
análise de fatores como autoria, data de escrita, local de composição,
destinatários originais, propósito, conteúdo geral, identificação e avaliação
das principais variantes textuais, situação canônica e contribuição teológica
da Epístola.
Esta introdução não pretende encerrar os assuntos
concernentes à Epístola, antes, visa contribuir com a discussão e hipóteses do
texto Bíblico Neotestamentário.
A base desta breve pesquisa consiste da revisão
bibliográfica de obras literárias Teológicas anteriores, e como tal, se limita
a apresentar as ideias de outros autores e oferecer possibilidades ao campo
Teológico.
AUTOR
Apesar de I Pedro começar
identificando-se como sendo escrita por Pedro isto não que dizer que a sua
autoria seja uma unanimidade entre os especialistas. Alguns comentários
consideram que esta epístola tem várias expressões similares à mensagem de
Paulo, especialmente quando direcionada à audiência de gentios cristãos. Sendo
assim, ela poderia ser uma carta Paulina (BAUCKHAM, 1988). BAUCKHAM chega
a citar F. W. Beare, que duvida da autoria de Pedro por identificar a
perseguição mencionada no livro com a do Imperador Trajano (98-117), sendo que
Pedro morreu em 54-68. Segundo ele, esta epístola faz uso de literatura Paulina
aparentemente posterior (BAUCKHAM, 1988). De acordo com o teólogo especialista
em Novo Testamento Reicke, a autoria deste livro pode ser de Silvano por
influencia de I Pe 5:12, especialmente levando em conta que Paulo citou 2 vezes
Silvano como seu colaborador I Ts 1:1 e II Ts 1:1 (1964, p. 69).
Mas apesar de algumas dúvidas a
respeito da autoria de I Pedro, existem fortes evidências históricas da autoria
desde o primeiro século, como a de II Pedro 3:1, que traz a citação de esta ser
a segunda carta escrita por ele, realçando a existência da primeira. Eusébio
cita uma tradição do meio do segundo século, comum a Papias de Hierapolis e
Clemente de Alexandria, de que “Pedro” cita Marcos em sua primeira epístola.
Irineu, perto do fim do segundo século, cita passagens de I Pedro, com a menção
explícita de que Pedro é o autor. Tertuliano faz alusão a I Pedro e cita Pedro
como autor da mesma. Clemente de Alexandria faz alusão à epístola de Pedro
frequentemente e o cita por nome.
Tendo em vista o testemunho dos vários
pais da igreja (BAUCKHAM, 1988); a forte evidência interna que indica a autoria
por Pedro; a aceitação maciça da autoria de Pedro por parte da igreja; a
ausência das marcas comuns às pseudoepígrafes, conforme Longman (1981, p. 211e
212), podendo ainda indicar outros autores, como Mattew Henry (1991, p.1001) e
Collins (1980, p. 547); ainda que de maneira não conclusiva, podemos defender
com boa base que Pedro é de fato o autor da epístola de I Pedro.
DATA
Para termos uma ideia da data de
composição de I Pedro precisamos compreender a trajetória de Pedro e o conteúdo
de sua epístola. Ao levar em consideração que Paulo e Pedro foram vitimas da
perseguição de Nero, iniciada após o incêndio de Roma em 64, a carta de Pedro
provavelmente foi escrita pouco tempo antes da grande perseguição promovida por
Nero por volta de 64 d.C. ( Longman, 1981). Grudem (1995, p. 36) diz que “A
posição tão positiva de Pedro em 2:13-17 não combina com a terrível perseguição
que Nero estabeleceu e levou a sua morte”. Assim entende-se que ela deve ter
sido escrita antes de 64 ad.
Uma argumentação de Grudem (1995, p.
36) “é que Pedro deve ter escrito a carta depois de Paulo deixar Roma, pois se
não teria mencionado alguma saudação de Paulo, mas só fez de Silvano e Marcos,
assim deixa a data para a carta entre 62 e 64”. Outra evidência que ajuda a
compreender a datação deste livro vem de Eusébio, que diz que Pedro só foi a
Roma no fim de sua vida, o que é sustentado pelo fato de Paulo dizer em
Filipenses 2:20-21 (datando esta carta de 60-62) que ele não tinha ninguém junto
de si que tivesse interesse em seu bem estar, à exceção de Timóteo. Levando
também em conta que II Pedro foi escrita também por Pedro antes da perseguição
de Nero em 64, a data de 62-63 parece a mais provável (GRUDEM, 1995). Diante
destes fatos a maioria dos estudiosos concordam em datar esta epístola por
volta de 62 e 63 d.C.
LOCAL DE COMPOSIÇÃO
A epístola traz informação direta
quanto ao local onde ela foi escrita, mas o contexto da época de escrita nos
direciona para uma compreensão não literal da informação oferecida. Em sua
saudação final (I Pe 5:13), o apóstolo diz que “aquela que se
encontra em Babilônia, também eleita, vos saúda”, o que indica que ele próprio
estaria “em Babilônia”. Pedro dificilmente estaria se referindo à antiga cidade
de Babilônia, na Mesopotâmia. Babilônia, no primeiro século, era uma cidade
obscura e pequena, e não existem evidências Bíblicas de sua presença em tal
cidade. Babilônia aparece em outros lugares do Novo Testamento como referência
a Roma (Ap 16:19, 17:5, 18:2), o que pode sugerir que esta comparação era
conhecida no contexto cristão do primeiro século. Eusébio, em 325, indica que
Pedro, ao falar de Babilônia, na realidade estava se referindo a Roma. O de
Babilônia somado à evidência histórica de que ele estava em Roma no fim de sua
vida indicam que I Pedro foi escrita de Roma (Grudem, 34-35).
DESTINATÁRIOS
O livro de I Pedro oferece uma
sequência conflitante de ideias a respeito de seu público alvo. Segundo
Bauckham, ao endereçar a epístola aos estrangeiros da dispersão logo no
primeiro verso, Pedro nos leva a entender que a mensagem é enviada para uma audiência
que ele não conhecia pessoalmente. Talvez eles fossem judeus espalhados pelo
mundo, o que é enfatizado em I Pedro 2:11. Em 1:17 a ideia da peregrinação é
também reforçada.
Por outro lado, muitos opinam que I
Pedro foi originalmente direcionada a uma audiência predominante gentílica, o
que é evidenciado pelo autor ao lembrar seus leitores do impulso que uma vez os
dirigiu em sua ignorância em 1:14, e da maneira vazia de vida que haviam
recebido por herança de seus pais em 1:18, que no passado andavam em
imoralidade e idolatria, entre outras práticas (4:3-5). Estas palavras
provavelmente não seriam dirigidas a Judeus, visto que o próprio autor diz que
eles (os destinatários) não eram do povo de Deus, mas agora que agora faziam
parte dele (1988, p. xlvi).
Segundo Grudem, (1995, p. 38) “O rápido
crescimento do cristianismo depois do pentecostes pode significar que existiam
tanto judeus cristãos, quanto gentios cristãos entre esta comunidade.” Já
Bauckham (1988, p. xlvi) considera que “A melhor explicação dos dados é que I
Pedro foi escrito primariamente para gentios cristãos na Ásia menor, mas que o
autor, por suas próprias razões, optou por tratá-los como se fossem judeus”.
Assim sendo, as evidências nos levam a
entender que a Epístola foi escrita para o público de gentios cristãos que
viviam no território da Ásia Menor.
PROPÓSITO
No que tange ao propósito da Primeira
Epístola de São Pedro, podemos partir do pressuposto de que o ponto temático básico
de Pedro em seu escrito seja o sofrimento (LADD, 2009). De fato, “a curta
epístola usa o verbo sofrer aproximadamente doze vezes, mais
do que qualquer outro livro do Novo Testamento” (MARSHALL, 2009, p. 551). Tendo
isto em vista, pode-se afirmar que o propósito de Pedro seja “encorajar e
ensinar os leitores em geral” (MARSHALL, 2007, p. 552).
Para a adequada compreensão do papel do
tema do sofrimento no propósito da Epístola, é preciso observar o contexto
histórico de sua produção; pois como afirma Marshall (2007), a perseguição
promovida contra os Cristãos da Ásia Menor ainda não era oficial (promovida pelo
Império) na época da composição desta Carta, antes, partia dos concidadãos dos
perseguidos. Corroborando com este ponto de vista, Ladd afirma o seguinte: “a
carta foi escrita, em grande parte, para encorajar os cristãos diante da
perseguição nas mãos da população pagã (4:12; [...] 5:9), com a possibilidade
de enfrentarem uma perseguição oficial, por serem cristãos (4:15 e ss.)” (LADD,
2009, p. 790).
Assim sendo, observamos que a
recorrência do tema do sofrimento possivelmente se dá em função da perseguição
que os destinatários da Epístola enfrentavam naquele momento. Não podemos,
entretanto, ignorar que o sofrimento não é o único ponto abordado em I Pedro.
Para Marshall, “o tema principal [...] é o modo como os crentes cristãos devem
viver no mundo” (MARSHALL, 2007, p. 552). Uma possível definição do propósito
da Epístola, tendo em vista esta perspectiva, é a formulação de orientações
para a manutenção do estilo de vida Cristão naquele contexto.
Uma abordagem adicional existente sobre
o propósito da Epístola é apresentado por Grudem:
Visto que muitas das exortações em I Pedro se
referem à fé e à obediência, pode-se sugerir que o propósito de I Pedro seja
encorajar os leitores a crescerem na confiança em Deus e sua obediência a Ele
através de suas vidas, especialmente quando eles sofrem. Pedro cumpre seu
propósito ao apontar para o que Deus fez por eles em Cristo, e então aplicando
isso para a vida dos leitores. (GRUDEM, 1995, p. 39, tradução nossa).
Podemos ainda ampliar nossa compreensão
quanto ao propósito de Pedro em sua Carta ao tomarmos as considerações de
Guthrie, que traz uma abordagem diferenciada:
O ponto-chave da carta é a esperança, e Pedro
deseja exortar estes cristãos [do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia] a
viver de acordo com a esperança que eles receberam através de Cristo. Ele
fornece um guia prático para ajudá-los em suas relações humanas, e os exorta
particularmente a enfrentar os sofrimentos de maneira alegre pelo amor de
Cristo. (GUTHRIE, 1990, p. 781, tradução nossa).
Ademais, Guthrie (1990), acompanhado
por Ironside (1978), propõe que I Pedro 5:12 é uma declaração de propósito
feita pelo próprio autor: testificar da graça de Deus, que é onde os Cristãos
se firmam.
Tendo em vista estas ideias, é possível
sugerir que o propósito da Primeira Epístola de Pedro seja a exortação à
obediência e ao viver santo, seja qual for a circunstância, pois as ações dos
crentes- especialmente em meio às aflições- são um testemunho da graça de
Deus.
CONTEÚDO
Concernente ao conteúdo da Epístola,
observamos que há uma mescla de ensino e exortação ao bom viver Cristão. Temos,
na Carta, o “exemplo de uma teologia cristã relativamente primitiva” (LADD,
2009, p. 790), e este conteúdo teológico presente na Epístola tem lugar
justamente devido ao caráter prático da Carta, seu conteúdo aplicável àquele
contexto, pois como defende Ladd (LADD, 2009), o viver cristão é pautado pela
base da crença Cristã- que é a Verdade Bíblica.
Talvez uma boa forma de estudarmos o
conteúdo da Primeira Carta de Pedro seja a análise da estrutura temática da
Epístola. Da perspectiva estrutural da Epístola, iniciando com aquilo que Brown
chama de “Divisão formal” (BROWN, 1997, p. 706, tradução nossa), encontramos que
o conteúdo geral da Epístola é: “A. Fórmula de abertura: 1:1-2; B. Corpo: 1:3 –
5:11 (1:3 – 2:10: Afirmação da identidade e dignidade Cristã; 2:11 – 3:12:
Comportamento apropriado para levar um bom testemunho em um mundo pagão; 3:13 -
5:11: Comportamento Cristão face à hostilidade); C. Fórmula de Conclusão:
5:12-14.” (BROWN, 1997, p. 706, tradução nossa).
Ironside apresenta uma organização
temática especial com base no tema do sofrimento ao longo de toda a Epístola:
Sofrimento como um julgamento da fé (1:6,7); Cristo
previu os sofrimentos (1:11); Sofrendo pelo bem da consciência (2:19); O
sofrimento de Cristo, nosso exemplo (2:21-23); Sofrendo por amor da Justiça
(3:14); Cristo sofreu por nossos pecados (3:18); Sofrimento para parar de pecar
(4:1); Participantes dos sofrimentos de Cristo (4:13); Sofrendo como um Cristão
(4:16) e Sofrendo por um tempo limitado (5:10). (IRONSIDE, 1978, p. 11-12,
tradução nossa).
Outro autor que apresenta ideias
distintas com respeito à organização do conteúdo da epístola é Ladd. Para ele,
a sequência é temática: “O Dualismo temporal; A ressurreição de Cristo; O
contraste entre o mundo maligno e o Céu; Deus; O sofrimento humano;
Cristologia; Expiação; A Igreja; A descida ao Hades; A vida cristã.” (LADD,
2009, p. 790-798). Note-se que a sequência proposta por Ladd foca não somente o
aspecto estrutural da Epístola, mas apresenta seções de cunho prático e
teológico em espaços distintos.
Talvez a mais concisa explanação
temático-estrutural sobre a Primeira Carta de Pedro seja a aplicada por Carson et
al.:
Depois da saudação de abertura (1:1-2) a carta
louva a Deus pela esperança e salvação dadas por Ele em Cristo (1:3-12). Isto
forma a base para uma exortação à obediência e ao viver santo (1:13-16) e um
lembrete da obra redentora de Cristo (1:17-21), com uma lembrança adicional da
importância de viver de uma maneira santa e amorosa (1:22-2:2). Cristo é então
apresentado como aquele em quem as profecias fundamentais do Antigo Testamento
são plenamente cumpridas (2:4-8), e a Igreja é descrita nos termos usados para
o povo e Deus no Antigo Testamento (2:912). Os Cristãos devem viver na devida
submissão às autoridades (2:13-17). Há exortações separadas para escravos,
esposas e maridos (2:18-3:7). A comunidade Cristã é geralmente chamada a viver
em harmonia e amor (3:8-12) e a tomar o exemplo de Cristo como que apontando o
caminho do sofrimento, se preciso for, mesmo que lês não tenham feito nada de
errado (3:13-22). Os crentes abandonaram seus caminhos pecaminosos de vida
(4:1-6); e agora cevem viver de forma que traga louvor a Deus (4:7-11). Os
leitores estão passando por um doloroso juízo, mas devem enfrentar seus
sofrimentos da maneira certa (4:12-19). Então vem as exortações aos anciãos
(5:1-4), aos jovens (5:5-6) e para todos (5:8-9), o que leva a uma doxologia
(5:10-11) e um final epistolar comum (5:12-14). (Carson et al., 1997, p. 421,
tradução nossa).
O conhecimento do conteúdo e
organização da Primeira Epístola de São Pedro se mostra fundamental para a
formação da base de interpretação aplicada à Carta. O conteúdo, conforme visto,
se desenvolve através da base da fé (Cristo e Sua obra) e do viver Cristão
(suportar o sofrimento para glorificar a Deus).
VARIANTES TEXTUAIS
Paul Achtemeier (1996, p. 74) esclarece
que a primeira carta de Pedro está contida completa em apenas um papiro, dez
manuscritos unciais e algumas centenas de manuscritos minúsculos. Essas
testemunhas textuais certamente não são as mais vigorosas, contudo a carta
ainda conta com o suporte de mais dois papiros e cinco unciais que proporcionam
para parte do texto alguma referência a mais.
A estrela-mor dessa tímida constelação
de manuscritos é o P72 (Bodmer VIII) que é o único papiro que contém por
completo o texto da epístola em estudo e que deu um novo impulso ao estudo
textual de I Pedro (ACHTMEIER, 1996, p. 74). Ele foi escrito entre o
terceiro e quarto século é o mais antigo e completo texto da carta, copiado por
quarto ou cinco escribas, tem no chamado “Escriba B”, um escriba um tanto
desleixado, o copista das partes de interesse para esta pesquisa. (PAROSCHI,
2012, p. 47).
Quanto aos manuscritos unciais existe
certa categoria superior, tendo em vista que a presença dos confiáveis códex
Sinaítico, Códice Vaticanus e Códice Alexandrino terminam por quase estabelecer
um “quem é quem” dos manuscritos unciais mais conhecidos e confiáveis que se
tem ciência(ACHTMEIER, 1996, p. 74).
O Códice Vaticanus (B), por exemplo,
foi escrito no Egito no início do século IV e é o manuscrito Uncial que, proporcionalmente,
contém menos erros. Seu valor para a análise da autenticidade do texto é de
inegável importância (PAROSCHI, 1999, p. 49).
Talvez de importância equivalente, o
Códice Sinaítico (א), do começo do
século IV, é o mais antigo manuscrito completo do novo testamento e um dos mais
valiosos de todos os manuscritos conhecidos (PAROSCHI, 2012, p. 48),
apesar de, como afirma Kurt Aland, ser menos confiável que o Códice Vaticanus (ALAND,
1989, p. 107).
Quanto as variantes textuais do
livro, Omanson (2010) cita 44 variantes relevantes para tradução,
Metzenger (1994) cita 47, sendo que dessas o presente estudo avaliará
apenas as de maior implicação para o significado final do texto, deixando de lado
as variantes de inserções explicativas, de forma, ou que acabam por não alterar
em nada o significado final.
A primeira variante se encontra em
1:22. Apesar do texto em questão possuir mais variantes apenas uma delas tem
influência real no significado do texto. Na parte do texto que diz “Agora que
vocês purificaram a sua vida pela obediência à verdade” (ARA) o texto da
Vulgata alguns manuscritos da antiga latina trazem ao invés de “verdade”
(grego ἀληθείας) “caridade” (latim caritatis),
dando assim um novo sentido ao texto (NESTLE et al., 1993, p.
1. Petrus 1,22).
Essa é uma variante que, apesar de
alterar significativamente o significado do texto, apresenta pouco desafio ou
relevância. Isso porque nenhum dos manuscritos gregos apresenta essa variante.
Omanson (2010, p. 501) cita que essa talvez fosse uma tradução latina
equivalente para ἀληθείας mas não chega a construir um
argumento mais amplo em cima disso. O restante dos comentaristas nem sequer
chega a comentar tal variante.
A segunda variante está no 2:21, ali
onde se lê “pois que também Cristo sofreu em vosso lugar” (ὅτι καὶ Χριστὸς
ἔπαθεν ὑπὲρ ὑμῶν), em alguns manuscritos importantes ( entre eles o
códex Sinaítico, o e o p81) trocam a palavra “sofreu” (ἔπαθεν) por
“morreu” (απεθανεν) (NESTLE et al., 1993, p. 1. Petrus
2,21).
Apesar da importância do Códice
Sinaítico e do P81, o conjunto do Códice Vaticano, Códice Alexandrino, códice
Efraimita e P72, que possuem ἔπαθεν, não pode ser facilmente
ignorado(NESTLE et al., 1993, p. 1. Petrus 2,21). Metzger (1994,
p. S. 619), por exemplo, acredita que, provavelmente, “sofreu” foi substituído
por “morreu” devido a uma outra variante em 3:18, posição essa que Omanson (2010,
p. 503) também apresenta, acrescentando que o tema da carta corrobora para
que a variante “sofreu” seja aceita como a correta.
Michaels (2002, p. 134), apesar de
concordar com as conclusões finais dos autores já citados, acredita que a
mudança foi feita para se ter conformidade com a fórmula usual do novo
testamento “merreu por”.
Por fim, a terceira, e última, variante
analisada é justamente a que, como já mencionado antes, Metzger e Omanson
acreditam ter influenciado a variante anterior. Trata-se da variante de 3:18
onde se lê na Almeida revista e atualizada “Pois também Cristo morreu, uma
única vez, pelos pecados” se tem ao invés de morreu (ἀπέθανεν),
sofreu (ἔπαθεν).
Esse certamente é um texto desafiante,
tendo em vista que os manuscritos apresentam tantas leituras que chega a ser
confuso (OMANSON, 2010, p. 506). Mesmo as leituras mais longas, que
geralmente são as mais improváveis, tem um impressionante apoio de
manuscritos(MICHAELS, 2002, p. 195).
Apesar disso, tanto Metzger (1994,
p. 622), como Michaels (2002, p. 195) e Omanson (2010, p. 506) concordam
que a variante final, ao contrário do que traz a Almeida Revista e Atualizada,
é περὶ ἁμαρτιῶν ἔπαθεν (sofreu pelos pecados).
Além da base razoável do Códice
Vaticano (que não seria o bastante para se afirmar com certeza que essa é o
texto original, já que o Códice Sinaítico, o códice Alexandrino, o P72 e outros
mais trazem leituras diferentes), Metzger (METZGER, 1994, p. s. 622) apresenta
que ἔπαθεν é um verbo que o autor usa com uma alta frequência
na carta e que é mais provável que algum copista tenha trocado morreu por
sofreu, sendo que o inverso é mais improvável.
Sendo assim, conclui-se que a epístola
de I Pedro possui um arcabouço de evidências textuais moderado que ajuda na
busca pelo texto mais próximo do original, contudo, como atesta Achtemeier (1996,
p. s. 75), mesmo a descoberta do P72 não pôs fim ao debate sobre as tradições
textuais e o texto original de I Pedro.
SITUAÇÃO CANÔNICA DE I PEDRO
Antes de compreender a situação
canônica de 1 Pedro, é preciso saber o que é o Canon e como ele se desenvolveu
no Novo Testamento. Esta palavra Canon tem seu significado original relacionado
a um padrão, uma régua, uma linha de equilíbrio, ou seja, o Canon seria a norma
de escrituras consideradas normativas e inspiradas pelo Espírito para a igreja
cristã (WESTCOTT, 1855).
Seu desenvolvimento aparece na história
como uma exigência de uma autoridade, em outras palavras, na época que foram
escritos os 27 escritos do Novo Testamento, eles não eram ainda escrituras
sagradas, existia apenas o antigo testamento (MOULE, 1979). Por esta
ausência de padrão das novas escrituras fez com que existissem muitos
evangelhos falsos. Por razão de seu número sempre aumentar, a igreja se viu em
necessidade de se atribuir uma norma autoritativa fixa (CULMANN, 1970).
O processo de formação do Canon levou
em conta que a tradição apostólica seria a norma superior para o valor
canônico. Somente escritos tendo seus autores como apóstolos ou relacionados
com os apóstolos são considerados como o mais puro testemunho cristão (CULMANN,
1970).
É interessante notar que neste processo
de formulação do Canon baseado na necessidade, o padrão das escrituras não era
feito por adição de livros, mas por eliminação dos falsos. Em outras palavras:
Os livros do NT não se fizeram possuídos de autoridade para a igreja pelo fato
de virem a ser formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a
Igreja os incluiu no Cânon porque já os havia como divinamente inspirados,
reconhecendo-lhes o valor inato e a autoridade apostólica, direta ou indireta
(BRUCE, 1965). A ação dos concílios de modo algum representa a imposição de
algo novo às existentes comunidades cristãs, pelo contrário, foi apenas a
simples codificação do que já era prática geral, corrente nessas comunidades
(BRUCE, 1965).
Por volta do ano 200, o Cânon do
Novo Testamento se aproximava muito do nosso, mas, as discussões com relação ao
Canon somente foram concluídas, no Ocidente pelo fim do século IV, sendo
marcadas pelos seguintes eventos o Sínodo de Roma em 382, Concílio Africano de
Hipo em 393 e de Cartago em 397 (CULMANN, 1970). No oriente mais distante o
processo demorou-se um pouco mais; foi somente por volta do ano 508 que II
Pedro, II e III João, Judas e o Apocalipse vieram a ser incluídos em uma versão
da Bíblia Siríaca em adição aos outros vinte e dois livros formando o Canon de
27 livros conhecido de hoje (BRUCE, 1965).
Seguindo então este pensamento de que o
Canon não impôs a si mesmo e que sua ideia surgiu por volta dos anos 140 – 150
da era cristã, como é possível saber da situação canônica de I Pedro? Para
responder esta pergunta, é preciso analisar se existem referências de que esta
carta de Pedro era aceita e conhecida pela igreja na época para que tivesse
sido incluído no Canon como o conhecemos hoje (CULMANN, 1970). Para tanto,
serão usadas evidências históricas de referências de pais da igreja.
A lista a seguir apresenta algumas
evidências históricas em relação a carta de 1 Pedro: Clemente de Roma 187,
Policarpo 48, Papias 77, Carta para Diognetus 92, Hermas 201, Melito 221,
Peshito 244, Teófilo 229, Basilides 296, Marcosians 310, Teódutos 312, Carta da
Igreja de Vienne 339, Tertuliano 263, Clemente Alex 347, Irineu 347, Orígenes
359 ( WESTCOTT, 1855) .
Estas evidências de ordem diversas
encontram-se nas alusões feitas em outras obras da antiguidade aos livros do
Novo Testamento e nas citações desses documentos em autores antigos. Os
chamados pais apostólicos, autores que escreveram geralmente entre 90 e 160
a.d., dão mostras inconfundíveis de familiaridade com a maioria dos livros do
Novo Testamento. Em três dessas obras, escritas nas proximidades do ano 100
a.d, a Epístola de Barnabé, originária talvez de Alexandria; o Didaquê ou
Ensino dos Doze Apóstolos, oriundo da Síria ou da Palestina; e a carta escrita à
igreja de Corinto pelo bispo Clemente de Roma, por volta do ano 96 a.d. É
possível achar citações indubitáveis da tradição comum dos evangelhos
Sinóticos, de Atos, Romanos, I Coríntios, Efésios, Tito, Hebreus e I Pedro, e
possíveis citações de outros livros do novo Testamento (BRUCE, 1965).
Nas cartas de Inácio, bispo de
Antioquia, que escreveu durante a jornada para o martírio em Roma em 115 a.d.,
há citações razoavelmente identificáveis de Mateus, João, Romanos, I e II
Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, I e II Timóteo, Tito, e possivelmente
alusões a Marcos, Lucas, Atos, Colossenses, II Tessalonicenses, Filemon,
Hebreus e I Pedro (BRUCE, 1965).
Policarpo, contemporâneo de Inácio,
mais jovem, porém, na carta que dirige aos Filipenses, cerca do ano 120, faz
citações da tradição comum dos Sinóticos, de Atos, Romanos, I e II Coríntios,
Gálatas, Efésios, Filipenses, II Tessalonicenses, I e II Timóteo, Hebreus, I
Pedro e I João (BRUCE, 1965).
Orígenes menciona I Pedro como aceito
por todos. Eusébio menciona como geralmente reconhecidos todos os livros do NT
excetuados Tiago, Judas, II Pedro, II e III João, contestados por alguns,
reconhecidos, entretanto pela maioria (BRUCE, 1965).
Atanásio , em 367, prescreve os
vinte e sete livros que nos constituem o Novo Testamento como sendo os únicos a
serem havidos como canônicos, o que inclui 1 Pedro (BRUCE, 1965).
Estes escritores nos acumulam
evidências da familiaridade destes autores com os escritos neo-testamentários e
do reconhecimento da autoridade destes documentos, incluindo a autoridade
canônica de 1 Pedro (BRUCE, 1965).
CONTRIBUIÇÃO TEOLÓGICA DE I PEDRO
A
primeira Epístola de Pedro foi escrita para os cristãos que viviam em cinco
províncias romanas que ficavam numa região que hoje faz parte da Turquia. Os
destinatários estavam enfrentando sofrimentos e perseguições por causa da
sua fé. Pedro procura animá-los a continuarem firmes na sua dedicação a Jesus
Cristo, mostrando que os sofrimentos servem para provar que a fé que eles têm é
verdadeira (HENRY, 1939).
Esta carta concede um curto e claro
resumo, tanto de consolação como de instruções necessárias para o encorajamento
e direção na jornada Cristã para o céu, elevando os pensamentos e desejos dos
leitores para aquela felicidade futura, fortalecendo-os contra todas as
oposições no caminho, seja da corrupção interior, ou tentações e aflições
exteriores que possam enfrentar (HENRY, 1939).
Embora a epístola de Pedro tenha sido
escrita para ir ao encontro das necessidades práticas, para fortalecer os
cristãos no sofrimento, e não para dar instruções doutrinárias, foi
corretamente chamada de epístola doutrinária, porque a vida cristã está baseada
na verdade cristã (LADD, 2003).
O tema dominante da epístola é o
encorajamento para que os leitores vivam firme e positivamente como crentes
cristãos no mundo, apesar dos sofrimentos e da oposição que encontrem. Pedro
anima-os pondo ênfase na esperança futura, que lhes está garantida, no modo
como Cristo os resgatou e na experiência que os crentes têm da graça e da força
de Deus aqui e agora, como também pelo estímulo à vida comunitária na condição
de povo de Deus. Sua teologia serve, portanto, para motivar a vida cristã.
Ele busca constantemente encorajar os
leitores e oferecer instruções práticas. A densidade da teologia dessa epístola
é notável: é uma rica fonte para se entender a natureza da vida cristã em um
mundo hostil. Comparada com Tiago, é mais uma epístola de encorajamento
do que de instrução prática.
Para Pedro, em face da glória futura, é
imperativo que os crentes tenham uma conduta santa no presente. Defendendo que
eles, os cristãos, foram libertados pelo sangue de Jesus da servidão do pecado,
redenção essa que evidencia que Ele sacrificou a Sua vida em favor dos
pecadores. Também é imperativo que os crentes se amem mutuamente, com base no
fato que todos eles nasceram na família de Deus através de Sua palavra, a fim
de crescerem como infantes recém-nascidos e serem edificados qual templo, tendo
a Cristo como pedra angular ou pedra de arremate (GUNDRY, 1998).
É interessante notar porém, que a
epístola possui a característica de não se envolver em polêmica com os leitores
ou com os grupos que entre eles estivessem difundindo falsas doutrinas e ideias
sobre o comportamento cristão, bem como estímulo para aqueles cujas esperanças
são fracas. A estrutura do pensamento na Epístola parece ser claramente a de
outras epístolas neotestamentárias.
O principal tema teológico dela é a
natureza da vida cristã em tempos de provação: os crentes, chamados para uma
esperança viva, devem viver vidas santas no temor de Deus e no amor mútuo,
respeitando a sociedade em que estão colocados, mas evitando suas tentações e
mantendo-se firmes em face à perseguição.
A primeira epístola de Pedro é muito
mais leal para com a mensagem de salvação. Como Thiago, contém um bom número de
injunções éticas. Mas elas estão aclimatadas e ancoradas na promessa da graça
de Deus que os fiéis já receberam e que os espera para o futuro. Assim, como
nas partes éticas das cartas paulinas, o indicativo vem antes do imperativo, e
o novo ser dos cristãos é a base de todas as exortações sobre o amor cristão
dentro da comunidade e para fora na direção do mundo (BORNKAMM, 1981).
Concluindo então, sua teologia possui
quatro premissas principais: ela se expressa numa forte dependência do Antigo
Testamento e na consciência de que os crentes agora é que formam o povo de
Deus, sua ênfase sobre o aspecto da esperança que há na fé, a compreensão de
Jesus segundo as imagens da pedra angular e do servo, o reconhecimento da
perseguição como uma nova oportunidade para o testemunho e da atitude positiva
de se viver de forma cristã no mundo apesar de sua pecaminosidade e oposição
(MARSHALL, 2007).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, portanto, que autoria da
Primeira Epístola de Pedro pode ser atribuída ao Apóstolo homônimo. Segundo a
maioria das referências bibliográficas obtém-se a da provável data de
composição entre os anos 62 e 63 da Era Comum. Escrita a partir de Roma e
destinada a Gentios Cristãos, a Epístola tem por propósito exortar à santidade
e ensinar os caminhos da fé Cristã.
Formada por informações teológicas e
práticas, I Pedro apresenta hoje um limitado acervo de manuscritos, com
consideráveis variantes textuais, porém que fornece boas possibilidades de
pesquisa para a formação de um texto crítico mais confiável e próximo do
original.
A Epístola teve boa aceitação no meio
Cristão dos primeiros séculos, este é um fato bem documentado, e assim sendo,
gozou de status canônico desde há muitos séculos.
A contribuição teológica se baseia na
autoridade e figuras do Antigo Testamento, o que fornece a base para a
ampliação e aplicação dos temas da vida de Cristo no testemunho dos Cristãos.
O estudo da Primeira Epístola de Pedro
é rico e certamente pode ser ampliado, especialmente no que tange à aplicação
daqueles princípios à vida Cristã contemporânea. Estudos futuros poderão
aprofundar tais questões, mas por hora o propósito desta breve introdução é
cumprido.
_________________________
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Olá, Alberto!
ResponderExcluirObrigado por sua contribuição para aqueles que buscam compreender e crescer nas Escrituras. Acredito que é um material valioso, bem escrito, bem fundamentado e de grande valia para o Reino.
Cheguei ao blog com a intenção de entender um pouco sobre o contexto da Epístola de Pedro e então, voltar à minha leitura da Bíblia. E fui conduzido a leitura completa.
Ainda engatinho no Evangelho, mas creio que é preciso estudar todo o contexto que envolve uma informação- a Bíblia, no caso - para que possamos extrair às verdades e aplicações do autor - que o Senhor nos deixou, no caso- e não, simplesmente, interpretarmos segundo nós mesmos, pinçando, deduzindo e conjecturando.
Que Deus possa lhe capacitar cada vez mais, e lhe abençoe grandemente.
Um fraterno abraço.
Guilherme - Rio de Janeiro.
Que legal saber que lhe foi útil as informações aqui publicadas! Um estudo mais aprofundado vale a pena! Que Deus lhe abençoe!! Um abraço!
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