sexta-feira, 30 de maio de 2014

Breve estudo introdutório da primeira epístola de Pedro

Trabalho produzido em co-autoria. Participação de: Albert Azevedo, Bruno Flávio, Fabrício Fraga, Osmário Xavier e Ronan Freitas. Edição: Fabrício Fraga. 

Imagem meramente ilustrativa

INTRODUÇÃO

O presente estudo consiste de um breve estudo introdutório à Primeira Epístola do Apóstolo Pedro. O objetivo desta pesquisa é fornecer diretrizes básicas para o estudo e interpretação da Epístola à luz de informações literárias, contextuais e teológicas.
A ampliação das linhas de estudo se dá através da análise de fatores como autoria, data de escrita, local de composição, destinatários originais, propósito, conteúdo geral, identificação e avaliação das principais variantes textuais, situação canônica e contribuição teológica da Epístola.
Esta introdução não pretende encerrar os assuntos concernentes à Epístola, antes, visa contribuir com a discussão e hipóteses do texto Bíblico Neotestamentário.
A base desta breve pesquisa consiste da revisão bibliográfica de obras literárias Teológicas anteriores, e como tal, se limita a apresentar as ideias de outros autores e oferecer possibilidades ao campo Teológico.

 AUTOR
           
Apesar de I Pedro começar identificando-se como sendo escrita por Pedro isto não que dizer que a sua autoria seja uma unanimidade entre os especialistas. Alguns comentários consideram que esta epístola tem várias expressões similares à mensagem de Paulo, especialmente quando direcionada à audiência de gentios cristãos. Sendo assim, ela poderia ser uma carta Paulina (BAUCKHAM, 1988).  BAUCKHAM chega a citar F. W. Beare, que duvida da autoria de Pedro por identificar a perseguição mencionada no livro com a do Imperador Trajano (98-117), sendo que Pedro morreu em 54-68. Segundo ele, esta epístola faz uso de literatura Paulina aparentemente posterior (BAUCKHAM, 1988). De acordo com o teólogo especialista em Novo Testamento Reicke, a autoria deste livro pode ser de Silvano por influencia de I Pe 5:12, especialmente levando em conta que Paulo citou 2 vezes Silvano como seu colaborador  I Ts 1:1 e II Ts 1:1 (1964, p. 69).
Mas apesar de algumas dúvidas a respeito da autoria de I Pedro, existem fortes evidências históricas da autoria desde o primeiro século, como a de II Pedro 3:1, que traz a citação de esta ser a segunda carta escrita por ele, realçando a existência da primeira. Eusébio cita uma tradição do meio do segundo século, comum a Papias de Hierapolis e Clemente de Alexandria, de que “Pedro” cita Marcos em sua primeira epístola. Irineu, perto do fim do segundo século, cita passagens de I Pedro, com a menção explícita de que Pedro é o autor. Tertuliano faz alusão a I Pedro e cita Pedro como autor da mesma. Clemente de Alexandria faz alusão à epístola de Pedro frequentemente e o cita por nome.
Tendo em vista o testemunho dos vários pais da igreja (BAUCKHAM, 1988); a forte evidência interna que indica a autoria por Pedro; a aceitação maciça da autoria de Pedro por parte da igreja; a ausência das marcas comuns às pseudoepígrafes, conforme Longman (1981, p. 211e 212), podendo ainda indicar outros autores, como Mattew Henry (1991, p.1001) e Collins (1980, p. 547); ainda que de maneira não conclusiva, podemos defender com boa base que Pedro é de fato o autor da epístola de I Pedro.

DATA

Para termos uma ideia da data de composição de I Pedro precisamos compreender a trajetória de Pedro e o conteúdo de sua epístola. Ao levar em consideração que Paulo e Pedro foram vitimas da perseguição de Nero, iniciada após o incêndio de Roma em 64, a carta de Pedro provavelmente foi escrita pouco tempo antes da grande perseguição promovida por Nero por volta de 64 d.C. ( Longman, 1981). Grudem (1995, p. 36) diz que “A posição tão positiva de Pedro em 2:13-17 não combina com a terrível perseguição que Nero estabeleceu e levou a sua morte”. Assim entende-se que ela deve ter sido escrita antes de 64 ad.
Uma argumentação de Grudem (1995, p. 36) “é que Pedro deve ter escrito a carta depois de Paulo deixar Roma, pois se não teria mencionado alguma saudação de Paulo, mas só fez de Silvano e Marcos, assim deixa a data para a carta entre 62 e 64”. Outra evidência que ajuda a compreender a datação deste livro vem de Eusébio, que diz que Pedro só foi a Roma no fim de sua vida, o que é sustentado pelo fato de Paulo dizer em Filipenses 2:20-21 (datando esta carta de 60-62) que ele não tinha ninguém junto de si que tivesse interesse em seu bem estar, à exceção de Timóteo. Levando também em conta que II Pedro foi escrita também por Pedro antes da perseguição de Nero em 64, a data de 62-63 parece a mais provável (GRUDEM, 1995). Diante destes fatos a maioria dos estudiosos concordam em datar esta epístola por volta de 62 e 63 d.C.

LOCAL DE COMPOSIÇÃO

A epístola traz informação direta quanto ao local onde ela foi escrita, mas o contexto da época de escrita nos direciona para uma compreensão não literal da informação oferecida. Em sua saudação final (I Pe 5:13), o apóstolo diz que  “aquela que  se encontra em Babilônia, também eleita, vos saúda”, o que indica que ele próprio estaria “em Babilônia”. Pedro dificilmente estaria se referindo à antiga cidade de Babilônia, na Mesopotâmia. Babilônia, no primeiro século, era uma cidade obscura e pequena, e não existem evidências Bíblicas de sua presença em tal cidade. Babilônia aparece em outros lugares do Novo Testamento como referência a Roma (Ap 16:19, 17:5, 18:2), o que pode sugerir que esta comparação era conhecida no contexto cristão do primeiro século. Eusébio, em 325, indica que Pedro, ao falar de Babilônia, na realidade estava se referindo a Roma. O de Babilônia somado à evidência histórica de que ele estava em Roma no fim de sua vida indicam que I Pedro foi escrita de Roma (Grudem, 34-35).
  
DESTINATÁRIOS

O livro de I Pedro oferece uma sequência conflitante de ideias a respeito de seu público alvo. Segundo Bauckham, ao endereçar a epístola aos estrangeiros da dispersão logo no primeiro verso, Pedro nos leva a entender que a mensagem é enviada para uma audiência que ele não conhecia pessoalmente. Talvez eles fossem judeus espalhados pelo mundo, o que é enfatizado em I Pedro 2:11. Em 1:17 a ideia da peregrinação é também reforçada.
Por outro lado, muitos opinam que I Pedro foi originalmente direcionada a uma audiência predominante gentílica, o que é evidenciado pelo autor ao lembrar seus leitores do impulso que uma vez os dirigiu em sua ignorância em 1:14, e da maneira vazia de vida que haviam recebido por herança de seus pais em 1:18, que no passado andavam em imoralidade e  idolatria, entre outras práticas (4:3-5). Estas palavras provavelmente não seriam dirigidas a Judeus, visto que o próprio autor diz que eles (os destinatários) não eram do povo de Deus, mas agora que agora faziam parte dele (1988, p. xlvi).
Segundo Grudem, (1995, p. 38) “O rápido crescimento do cristianismo depois do pentecostes pode significar que existiam tanto judeus cristãos, quanto gentios cristãos entre esta comunidade.” Já Bauckham (1988, p. xlvi) considera que “A melhor explicação dos dados é que I Pedro foi escrito primariamente para gentios cristãos na Ásia menor, mas que o autor, por suas próprias razões, optou por tratá-los como se fossem judeus”.
Assim sendo, as evidências nos levam a entender que a Epístola foi escrita para o público de gentios cristãos que viviam no território da Ásia Menor.
                                                         
PROPÓSITO

No que tange ao propósito da Primeira Epístola de São Pedro, podemos partir do pressuposto de que o ponto temático básico de Pedro em seu escrito seja o sofrimento (LADD, 2009). De fato, “a curta epístola usa o verbo sofrer aproximadamente doze vezes, mais do que qualquer outro livro do Novo Testamento” (MARSHALL, 2009, p. 551). Tendo isto em vista, pode-se afirmar que o propósito de Pedro seja “encorajar e ensinar os leitores em geral” (MARSHALL, 2007, p. 552).
Para a adequada compreensão do papel do tema do sofrimento no propósito da Epístola, é preciso observar o contexto histórico de sua produção; pois como afirma Marshall (2007), a perseguição promovida contra os Cristãos da Ásia Menor ainda não era oficial (promovida pelo Império) na época da composição desta Carta, antes, partia dos concidadãos dos perseguidos. Corroborando com este ponto de vista, Ladd afirma o seguinte: “a carta foi escrita, em grande parte, para encorajar os cristãos diante da perseguição nas mãos da população pagã (4:12; [...] 5:9), com a possibilidade de enfrentarem uma perseguição oficial, por serem cristãos (4:15 e ss.)” (LADD, 2009, p. 790).
Assim sendo, observamos que a recorrência do tema do sofrimento possivelmente se dá em função da perseguição que os destinatários da Epístola enfrentavam naquele momento. Não podemos, entretanto, ignorar que o sofrimento não é o único ponto abordado em I Pedro. Para Marshall, “o tema principal [...] é o modo como os crentes cristãos devem viver no mundo” (MARSHALL, 2007, p. 552). Uma possível definição do propósito da Epístola, tendo em vista esta perspectiva, é a formulação de orientações para a manutenção do estilo de vida Cristão naquele contexto.
Uma abordagem adicional existente sobre o propósito da Epístola é apresentado por Grudem:

Visto que muitas das exortações em I Pedro se referem à fé e à obediência, pode-se sugerir que o propósito de I Pedro seja encorajar os leitores a crescerem na confiança em Deus e sua obediência a Ele através de suas vidas, especialmente quando eles sofrem. Pedro cumpre seu propósito ao apontar para o que Deus fez por eles em Cristo, e então aplicando isso para a vida dos leitores. (GRUDEM, 1995, p. 39, tradução nossa).

Podemos ainda ampliar nossa compreensão quanto ao propósito de Pedro em sua Carta ao tomarmos as considerações de Guthrie, que traz uma abordagem diferenciada:

O ponto-chave da carta é a esperança, e Pedro deseja exortar estes cristãos [do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia] a viver de acordo com a esperança que eles receberam através de Cristo. Ele fornece um guia prático para ajudá-los em suas relações humanas, e os exorta particularmente a enfrentar os sofrimentos de maneira alegre pelo amor de Cristo. (GUTHRIE, 1990, p. 781, tradução nossa).

Ademais, Guthrie (1990), acompanhado por Ironside (1978), propõe que I Pedro 5:12 é uma declaração de propósito feita pelo próprio autor: testificar da graça de Deus, que é onde os Cristãos se firmam.
Tendo em vista estas ideias, é possível sugerir que o propósito da Primeira Epístola de Pedro seja a exortação à obediência e ao viver santo, seja qual for a circunstância, pois as ações dos crentes- especialmente em meio às aflições- são um testemunho  da graça de Deus.

CONTEÚDO

Concernente ao conteúdo da Epístola, observamos que há uma mescla de ensino e exortação ao bom viver Cristão. Temos, na Carta, o “exemplo de uma teologia cristã relativamente primitiva” (LADD, 2009, p. 790), e este conteúdo teológico presente na Epístola tem lugar justamente devido ao caráter prático da Carta, seu conteúdo aplicável àquele contexto, pois como defende Ladd (LADD, 2009), o viver cristão é pautado pela base da crença Cristã- que é a Verdade Bíblica.
Talvez uma boa forma de estudarmos o conteúdo da Primeira Carta de Pedro seja a análise da estrutura temática da Epístola. Da perspectiva estrutural da Epístola, iniciando com aquilo que Brown chama de “Divisão formal” (BROWN, 1997, p. 706, tradução nossa), encontramos que o conteúdo geral da Epístola é: “A. Fórmula de abertura: 1:1-2; B. Corpo: 1:3 – 5:11 (1:3 – 2:10: Afirmação da identidade e dignidade Cristã; 2:11 – 3:12: Comportamento apropriado para levar um bom testemunho em um mundo pagão; 3:13 - 5:11: Comportamento Cristão face à hostilidade); C. Fórmula de Conclusão: 5:12-14.” (BROWN, 1997, p. 706, tradução nossa).
Ironside apresenta uma organização temática especial com base no tema do sofrimento ao longo de toda a Epístola:

Sofrimento como um julgamento da fé (1:6,7); Cristo previu os sofrimentos (1:11); Sofrendo pelo bem da consciência (2:19); O sofrimento de Cristo, nosso exemplo (2:21-23); Sofrendo por amor da Justiça (3:14); Cristo sofreu por nossos pecados (3:18); Sofrimento para parar de pecar (4:1); Participantes dos sofrimentos de Cristo (4:13); Sofrendo como um Cristão (4:16) e Sofrendo por um tempo limitado (5:10). (IRONSIDE, 1978, p. 11-12, tradução nossa).

Outro autor que apresenta ideias distintas com respeito à organização do conteúdo da epístola é Ladd. Para ele, a sequência é temática: “O Dualismo temporal; A ressurreição de Cristo; O contraste entre o mundo maligno e o Céu; Deus; O sofrimento humano; Cristologia; Expiação; A Igreja; A descida ao Hades; A vida cristã.” (LADD, 2009, p. 790-798). Note-se que a sequência proposta por Ladd foca não somente o aspecto estrutural da Epístola, mas apresenta seções de cunho prático e teológico em espaços distintos.
Talvez a mais concisa explanação temático-estrutural sobre a Primeira Carta de Pedro seja a aplicada por Carson et al.:

Depois da saudação de abertura (1:1-2) a carta louva a Deus pela esperança e salvação dadas por Ele em Cristo (1:3-12). Isto forma a base para uma exortação à obediência e ao viver santo (1:13-16) e um lembrete da obra redentora de Cristo (1:17-21), com uma lembrança adicional da importância de viver de uma maneira santa e amorosa (1:22-2:2). Cristo é então apresentado como aquele em quem as profecias fundamentais do Antigo Testamento são plenamente cumpridas (2:4-8), e a Igreja é descrita nos termos usados para o povo e Deus no Antigo Testamento (2:912). Os Cristãos devem viver na devida submissão às autoridades (2:13-17). Há exortações separadas para escravos, esposas e maridos (2:18-3:7). A comunidade Cristã é geralmente chamada a viver em harmonia e amor (3:8-12) e a tomar o exemplo de Cristo como que apontando o caminho do sofrimento, se preciso for, mesmo que lês não tenham feito nada de errado (3:13-22). Os crentes abandonaram seus caminhos pecaminosos de vida (4:1-6); e agora cevem viver de forma que traga louvor a Deus (4:7-11). Os leitores estão passando por um doloroso juízo, mas devem enfrentar seus sofrimentos da maneira certa (4:12-19). Então vem as exortações aos anciãos (5:1-4), aos jovens (5:5-6) e para todos (5:8-9), o que leva a uma doxologia (5:10-11) e um final epistolar comum (5:12-14). (Carson et al., 1997, p. 421, tradução nossa).

O conhecimento do conteúdo e organização da Primeira Epístola de São Pedro se mostra fundamental para a formação da base de interpretação aplicada à Carta. O conteúdo, conforme visto, se desenvolve através da base da fé (Cristo e Sua obra) e do viver Cristão (suportar o sofrimento para glorificar a Deus).

 VARIANTES TEXTUAIS

Paul Achtemeier (1996, p. 74) esclarece que a primeira carta de Pedro está contida completa em apenas um papiro, dez manuscritos unciais e algumas centenas de manuscritos minúsculos. Essas testemunhas textuais certamente não são as mais vigorosas, contudo a carta ainda conta com o suporte de mais dois papiros e cinco unciais que proporcionam para parte do texto alguma referência a mais.
A estrela-mor dessa tímida constelação de manuscritos é o P72 (Bodmer VIII) que é o único papiro que contém por completo o texto da epístola em estudo e que deu um novo impulso ao estudo textual de I Pedro (ACHTMEIER, 1996, p. 74). Ele foi escrito entre o terceiro e quarto século é o mais antigo e completo texto da carta, copiado por quarto ou cinco escribas, tem no chamado “Escriba B”, um escriba um tanto desleixado, o copista das partes de interesse para esta pesquisa. (PAROSCHI, 2012, p. 47).
Quanto aos manuscritos unciais existe certa categoria superior, tendo em vista que a presença dos confiáveis códex Sinaítico, Códice Vaticanus e Códice Alexandrino terminam por quase estabelecer um “quem é quem” dos manuscritos unciais mais conhecidos e confiáveis que se tem ciência(ACHTMEIER, 1996, p. 74).
O Códice Vaticanus (B), por exemplo, foi escrito no Egito no início do século IV e é o manuscrito Uncial que, proporcionalmente, contém menos erros. Seu valor para a análise da autenticidade do texto é de inegável importância (PAROSCHI, 1999, p. 49).
Talvez de importância equivalente, o Códice Sinaítico (א), do começo do século IV, é o mais antigo manuscrito completo do novo testamento e um dos mais valiosos de todos os manuscritos conhecidos (PAROSCHI, 2012, p. 48), apesar de, como afirma Kurt Aland, ser menos confiável que o Códice Vaticanus (ALAND, 1989, p. 107).
 Quanto as variantes textuais do livro, Omanson (2010) cita 44 variantes relevantes para tradução, Metzenger (1994) cita 47, sendo que dessas o presente estudo avaliará apenas as de maior implicação para o significado final do texto, deixando de lado as variantes de inserções explicativas, de forma, ou que acabam por não alterar em nada o significado final.
A primeira variante se encontra em 1:22. Apesar do texto em questão possuir mais variantes apenas uma delas tem influência real no significado do texto. Na parte do texto que diz “Agora que vocês purificaram a sua vida pela obediência à verdade” (ARA) o texto da Vulgata alguns manuscritos da antiga latina trazem ao invés de “verdade” (grego  ἀληθείας) “caridade” (latim caritatis), dando assim um novo sentido ao texto (NESTLE et al., 1993, p. 1. Petrus 1,22).
Essa é uma variante que, apesar de alterar significativamente o significado do texto, apresenta pouco desafio ou relevância. Isso porque nenhum dos manuscritos gregos apresenta essa variante. Omanson (2010, p. 501) cita que essa talvez fosse uma tradução latina equivalente para ἀληθείας mas não chega a construir um argumento mais amplo em cima disso. O restante dos comentaristas nem sequer chega a comentar tal variante.
A segunda variante está no 2:21, ali onde se lê “pois que também Cristo sofreu em vosso lugar” (ὅτι καὶ Χριστὸς ἔπαθεν ὑπὲρ ὑμῶν),  em alguns manuscritos importantes ( entre eles o códex Sinaítico, o  e o p81) trocam a palavra “sofreu” (ἔπαθεν) por “morreu” (απεθανεν) (NESTLE et al., 1993, p. 1. Petrus 2,21).
Apesar da importância do Códice Sinaítico e do P81, o conjunto do Códice Vaticano, Códice Alexandrino, códice Efraimita e P72, que possuem ἔπαθεν, não pode ser facilmente ignorado(NESTLE et al., 1993, p. 1. Petrus 2,21). Metzger (1994, p. S. 619), por exemplo, acredita que, provavelmente, “sofreu” foi substituído por “morreu” devido a uma outra variante em 3:18, posição essa que Omanson (2010, p. 503) também apresenta, acrescentando que o tema da carta corrobora para que a variante “sofreu” seja aceita como a correta.
Michaels (2002, p. 134), apesar de concordar com as conclusões finais dos autores já citados, acredita que a mudança foi feita para se ter conformidade com a fórmula usual do novo testamento “merreu por”.
Por fim, a terceira, e última, variante analisada é justamente a que, como já mencionado antes, Metzger e Omanson acreditam ter influenciado a variante anterior. Trata-se da variante de 3:18 onde se lê na Almeida revista e atualizada “Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados”  se tem ao invés de morreu (ἀπέθανεν), sofreu (ἔπαθεν).
Esse certamente é um texto desafiante, tendo em vista que os manuscritos apresentam tantas leituras que chega a ser confuso (OMANSON, 2010, p. 506). Mesmo as leituras mais longas, que geralmente são as mais improváveis, tem um impressionante apoio de manuscritos(MICHAELS, 2002, p. 195).
Apesar disso, tanto Metzger (1994, p. 622), como Michaels (2002, p. 195) e Omanson (2010, p. 506) concordam que a variante final, ao contrário do que traz a Almeida Revista e Atualizada, é περὶ ἁμαρτιῶν ἔπαθεν (sofreu pelos pecados).
Além da base razoável do Códice Vaticano (que não seria o bastante para se afirmar com certeza que essa é o texto original, já que o Códice Sinaítico, o códice Alexandrino, o P72 e outros mais trazem leituras diferentes), Metzger (METZGER, 1994, p. s. 622) apresenta que ἔπαθεν é um verbo que o autor usa com uma alta frequência na carta e que é mais provável que algum copista tenha trocado morreu por sofreu, sendo que o inverso é mais improvável.
Sendo assim, conclui-se que a epístola de I Pedro possui um arcabouço de evidências textuais moderado que ajuda na busca pelo texto mais próximo do original, contudo, como atesta Achtemeier (1996, p. s. 75), mesmo a descoberta do P72 não pôs fim ao debate sobre as tradições textuais e o texto original de I Pedro.

SITUAÇÃO CANÔNICA DE I PEDRO

Antes de compreender a situação canônica de 1 Pedro, é preciso saber o que é o Canon e como ele se desenvolveu no Novo Testamento. Esta palavra Canon tem seu significado original relacionado a um padrão, uma régua, uma linha de equilíbrio, ou seja, o Canon seria a norma de escrituras consideradas normativas e inspiradas pelo Espírito para a igreja cristã (WESTCOTT, 1855).
Seu desenvolvimento aparece na história como uma exigência de uma autoridade, em outras palavras, na época que foram escritos os 27 escritos do Novo Testamento, eles não eram ainda escrituras sagradas, existia apenas o antigo testamento  (MOULE, 1979). Por esta ausência de padrão das novas escrituras fez com que existissem muitos evangelhos falsos. Por razão de seu número sempre aumentar, a igreja se viu em necessidade de se atribuir uma norma autoritativa fixa (CULMANN, 1970).
O processo de formação do Canon levou em conta que a tradição apostólica seria a norma superior para o valor canônico. Somente escritos tendo seus autores como apóstolos ou relacionados com os apóstolos são considerados como o mais puro testemunho cristão (CULMANN, 1970).
É interessante notar que neste processo de formulação do Canon baseado na necessidade, o padrão das escrituras não era feito por adição de livros, mas por eliminação dos falsos. Em outras palavras: Os livros do NT não se fizeram possuídos de autoridade para a igreja pelo fato de virem a ser formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja os incluiu no Cânon porque já os havia como divinamente inspirados, reconhecendo-lhes o valor inato e a autoridade apostólica, direta ou indireta (BRUCE, 1965). A ação dos concílios de modo algum representa a imposição de algo novo às existentes comunidades cristãs, pelo contrário, foi apenas a simples codificação do que já era prática geral, corrente nessas comunidades (BRUCE, 1965).
 Por volta do ano 200, o Cânon do Novo Testamento se aproximava muito do nosso, mas, as discussões com relação ao Canon somente foram concluídas, no Ocidente pelo fim do século IV, sendo marcadas pelos seguintes eventos o Sínodo de Roma em 382, Concílio Africano de Hipo em 393 e de Cartago em 397 (CULMANN, 1970). No oriente mais distante o processo demorou-se um pouco mais; foi somente por volta do ano 508 que II Pedro, II e III João, Judas e o Apocalipse vieram a ser incluídos em uma versão da Bíblia Siríaca em adição aos outros vinte e dois livros formando o Canon de 27 livros conhecido de hoje  (BRUCE, 1965).
Seguindo então este pensamento de que o Canon não impôs a si mesmo e que sua ideia surgiu por volta dos anos 140 – 150 da era cristã, como é possível saber da situação canônica de I Pedro? Para responder esta pergunta, é preciso analisar se existem referências de que esta carta de Pedro era aceita e conhecida pela igreja na época para que tivesse sido incluído no Canon como o conhecemos hoje (CULMANN, 1970). Para tanto, serão usadas evidências históricas de referências de pais da igreja.
A lista a seguir apresenta algumas evidências históricas em relação a carta de 1 Pedro: Clemente de Roma 187, Policarpo 48, Papias 77, Carta para Diognetus 92, Hermas 201, Melito 221, Peshito 244, Teófilo 229, Basilides 296, Marcosians 310, Teódutos 312, Carta da Igreja de Vienne 339, Tertuliano 263, Clemente Alex 347, Irineu 347, Orígenes 359  ( WESTCOTT, 1855) .
Estas evidências de ordem diversas encontram-se nas alusões feitas em outras obras da antiguidade aos livros do Novo Testamento e nas citações desses documentos em autores antigos. Os chamados pais apostólicos, autores que escreveram geralmente entre 90 e 160 a.d., dão mostras inconfundíveis de familiaridade com a maioria dos livros do Novo Testamento. Em três dessas obras, escritas nas proximidades do ano 100 a.d, a Epístola de Barnabé, originária talvez de Alexandria; o Didaquê ou Ensino dos Doze Apóstolos, oriundo da Síria ou da Palestina; e a carta escrita à igreja de Corinto pelo bispo Clemente de Roma, por volta do ano 96 a.d. É possível achar citações indubitáveis da tradição comum dos evangelhos Sinóticos, de Atos, Romanos, I Coríntios, Efésios, Tito, Hebreus e I Pedro, e possíveis citações de outros livros do novo Testamento (BRUCE, 1965).
Nas cartas de Inácio, bispo de Antioquia, que escreveu durante a jornada para o martírio em Roma em 115 a.d., há citações razoavelmente identificáveis de Mateus, João, Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, I e II Timóteo, Tito, e possivelmente alusões a Marcos, Lucas, Atos, Colossenses, II Tessalonicenses, Filemon, Hebreus e I Pedro (BRUCE, 1965).
Policarpo, contemporâneo de Inácio, mais jovem, porém, na carta que dirige aos Filipenses, cerca do ano 120, faz citações da tradição comum dos Sinóticos, de Atos, Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, II Tessalonicenses, I e II Timóteo, Hebreus, I Pedro e I João (BRUCE, 1965).
Orígenes menciona I Pedro como aceito por todos. Eusébio menciona como geralmente reconhecidos todos os livros do NT excetuados Tiago, Judas, II Pedro, II e III João, contestados por alguns, reconhecidos, entretanto pela maioria (BRUCE, 1965).
 Atanásio , em 367, prescreve os vinte e sete livros que nos constituem o Novo Testamento como sendo os únicos a serem havidos como canônicos, o que inclui 1 Pedro (BRUCE, 1965).
Estes escritores nos acumulam evidências da familiaridade destes autores com os escritos neo-testamentários e do reconhecimento da autoridade destes documentos, incluindo a autoridade canônica de 1 Pedro (BRUCE, 1965).

CONTRIBUIÇÃO TEOLÓGICA DE I PEDRO

A primeira Epístola de Pedro foi escrita para os cristãos que viviam em cinco províncias romanas que ficavam numa região que hoje faz parte da Turquia. Os destinatários  estavam enfrentando sofrimentos e perseguições por causa da sua fé. Pedro procura animá-los a continuarem firmes na sua dedicação a Jesus Cristo, mostrando que os sofrimentos servem para provar que a fé que eles têm é verdadeira (HENRY, 1939).
Esta carta concede um curto e claro resumo, tanto de consolação como de instruções necessárias para o encorajamento e direção na jornada Cristã para o céu, elevando os pensamentos e desejos dos leitores para aquela felicidade futura, fortalecendo-os contra todas as oposições no caminho, seja da corrupção interior, ou tentações e aflições exteriores que possam enfrentar (HENRY, 1939).
Embora a epístola de Pedro tenha sido escrita para ir ao encontro das necessidades práticas, para fortalecer os cristãos no sofrimento, e não para dar instruções doutrinárias, foi corretamente chamada de epístola doutrinária, porque a vida cristã está baseada na verdade cristã (LADD, 2003).
O tema dominante da epístola é o encorajamento para que os leitores vivam firme e positivamente como crentes cristãos no mundo, apesar dos sofrimentos e da oposição que encontrem. Pedro anima-os pondo ênfase na esperança futura, que lhes está garantida, no modo como Cristo os resgatou e na experiência que os crentes têm da graça e da força de Deus aqui e agora, como também pelo estímulo à vida comunitária na condição de povo de Deus. Sua teologia serve, portanto, para motivar a vida cristã.
Ele busca constantemente encorajar os leitores e oferecer instruções práticas. A densidade da teologia dessa epístola é notável: é uma rica fonte para se entender a natureza da vida cristã em um mundo hostil. Comparada com Tiago, é mais  uma epístola de encorajamento do que de instrução prática.
Para Pedro, em face da glória futura, é imperativo que os crentes tenham uma conduta santa no presente. Defendendo que eles, os cristãos, foram libertados pelo sangue de Jesus da servidão do pecado, redenção essa que evidencia que Ele sacrificou a Sua vida em favor dos pecadores. Também é imperativo que os crentes se amem mutuamente, com base no fato que todos eles nasceram na família de Deus através de Sua palavra, a fim de crescerem como infantes recém-nascidos e serem edificados qual templo, tendo a Cristo como pedra angular ou pedra de arremate (GUNDRY, 1998).
É interessante notar porém, que a epístola possui a característica de não se envolver em polêmica com os leitores ou com os grupos que entre eles estivessem difundindo falsas doutrinas e ideias sobre o comportamento cristão, bem como estímulo para aqueles cujas esperanças são fracas. A estrutura do pensamento na Epístola parece ser claramente a de outras epístolas neotestamentárias.
O principal tema teológico dela é a natureza da vida cristã em tempos de provação: os crentes, chamados para uma esperança viva, devem viver vidas santas no temor de Deus e no amor mútuo, respeitando a sociedade em que estão colocados, mas evitando suas tentações e mantendo-se firmes em face à perseguição.
A primeira epístola de Pedro é muito mais leal para com a mensagem de salvação. Como Thiago, contém um bom número de injunções éticas. Mas elas estão aclimatadas e ancoradas na promessa da graça de Deus que os fiéis já receberam e que os espera para o futuro. Assim, como nas partes éticas das cartas paulinas, o indicativo vem antes do imperativo, e o novo ser dos cristãos é a base de todas as exortações sobre o amor cristão dentro da comunidade e para fora na direção do mundo (BORNKAMM, 1981).
Concluindo então, sua teologia possui quatro premissas principais: ela se expressa numa forte dependência do Antigo Testamento e na consciência de que os crentes agora é que formam o povo de Deus, sua ênfase sobre o aspecto da esperança que há na fé, a compreensão de Jesus segundo as imagens da pedra angular e do servo, o reconhecimento da perseguição como uma nova oportunidade para o testemunho e da atitude positiva de se viver de forma cristã no mundo apesar de sua pecaminosidade e oposição (MARSHALL, 2007).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se, portanto, que autoria da Primeira Epístola de Pedro pode ser atribuída ao Apóstolo homônimo. Segundo a maioria das referências bibliográficas obtém-se a da provável data de composição entre os anos 62 e 63 da Era Comum. Escrita a partir de Roma e destinada a Gentios Cristãos, a Epístola tem por propósito exortar à santidade e ensinar os caminhos da fé Cristã.
Formada por informações teológicas e práticas, I Pedro apresenta hoje um limitado acervo de manuscritos, com consideráveis variantes textuais, porém que fornece boas possibilidades de pesquisa para a formação de um texto crítico mais confiável e próximo do original.
A Epístola teve boa aceitação no meio Cristão dos primeiros séculos, este é um fato bem documentado, e assim sendo, gozou de status canônico desde há muitos séculos.
A contribuição teológica se baseia na autoridade e figuras do Antigo Testamento, o que fornece a base para a ampliação e aplicação dos temas da vida de Cristo no testemunho dos Cristãos.
O estudo da Primeira Epístola de Pedro é rico e certamente pode ser ampliado, especialmente no que tange à aplicação daqueles princípios à vida Cristã contemporânea. Estudos futuros poderão aprofundar tais questões, mas por hora o propósito desta breve introdução é cumprido.

_________________________

Referências bibliográficas

ACHTMEIER, P. J. A commentary on First Peter. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1996.

ALAND, K. The Text of The New Testament. Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing Company, 1989.

BAUCKHAM, Richard J. Word Biblical Comentary. 1 Peter. Dallas, TX: Word Incorporated, 1988.

BORNKAMM, Gunther. Novo Testamento: introdução aos seus escritos no quadro da história do cristianismo primitivo. São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1981.

BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento? São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1965.

CARSON, D.; MOO, D.; e MORRIS L. An Introduction to the New Testament. Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1997

COLLINS, Sergio V.  Seventh-Day Adventist Bible Commentary. Volume 7. Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 1980.

CULMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1970.

GAMBLE, Harry. The New Testament Canon: its Making and Meaning. Philadelphia, PA: Fortress Press, 1985.

GRUDEM, Wayne. The First Epistle of Peter – An Introduction and Commentary. Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing Company, 1995.

GUNDRY, H. Robert. Panorama do Novo Testamento. São Paulo, SP: Vida Nova, 1998.

GUTHRIE, Donald. New Testament Introduction. 4° ed. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1990.

HENRY, Matthew. Comentario Exegético Devocional a Toda La Bíblia desde San Tiago hasta Apocalipsis. Terrassa, BCN: Editorial Clie, 1991.

HENRY, Matthew. Matthew Henry's Concise Commentary on the Bible. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1939.

IRONSIDE, H. A. Expository Notes on the Epistles of Peter. Neptune, NJ: Loizeaux Brothers, Inc., 1978

LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, SP: Editora Hagnos, 2009.

LONGMAN, Tremper e GARLAND, David E. The Expositor’s Bible Commentary Volume 12. Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1981.

MARSHALL, I. Howard. Teologia do Novo Testamento: Diversos Testemunhos, um só Evangelho. São Paulo, SP: Editora Vida Nova, 2007.

METZGER, B. A Textual Commentary on the Greek New testament. 2° ed. New York, NY: United Bible Societies, 1994.

METZGER, B. The New Testament: its background, growth, and content.  Nashville,TN: Abingdon Press, 1980.

MICHAELS, J. R. Word Biblical Commentary : 1 Peter. Dallas, TX: Word Incorporated, 2002.

MICHAELS, J. Ramsey. World Biblical Commentary: Volume 49. Dallas, TX: Word Books Publisher, 1988.

MOULE, C.F.D. As Origens do Novo Testamento. São Paulo, SP: Paulinas, 1979.

MUELLER, R. Ênio. I Pedro: introdução e comentário. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 1988.

NESTLE, E. et al. Novum Testamentum Graece. 27° ed. Stuttgart, BW: Institut für Neutestamentliche Textforschung, 1993.

OMANSON, R. L. Variantes textuais do Novo Testamento - Análise e Avaliação do Aparato Crítico de “O Novo Testamento Grego”. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.

PAROSCHI, W. Crítica Textual do Novo Testamento. 2° ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 1999.

PAROSCHI, W. Origem e Transmissão do Texto no Novo Testamento. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012.

RAYMOND E. An Introduction to the New Testament. New York, NY: Doubleday, 1997.

SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. A Bíblia Sagrada. Revista e Atualizada no Brasil. 2° ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

WESTCOTT, B. Foss. A General Survey of The History of The Canon of The New Testament. New York, NY: The University Press Cambridge, 1855. 

Qual Messias foi citado no caminho de Emaús: uma análise exegética de Lucas 24:19-21.





INTRODUÇÃO

O texto de Lucas 24:13 inicia a seção conhecida como “os discípulos no caminho de Emaús”. Ali, Lucas apresenta Jesus se revelando de maneira velada a dois discípulos desconhecidos após sua morte e, não sabida para eles até o momento, ressurreição.
Os dois homens andando de Jerusalém para Emaús eram discípulos que se encontravam desanimados. Sua esperança de que Jesus libertaria Israel (Lc 24:21) fora frustrada. É possível ter a impressão de que esses homens estavam desanimados e decepcionados porque Deus não havia feito o que esperavam (WIERSBE, 2006).
 É interessante notar que para ajudá-los, Cristo estabelece um diálogo perguntando sobre as últimas ocorrências. Eles respondem sobre sua tristeza pelos últimos acontecimentos, referindo-se especificamente ao desapontamento que tiveram sobre um varão profeta, como diz Lucas 24:19 a 21

Ele lhes perguntou: Quais? E explicaram: O que aconteceu a Jesus, o Nazareno, que era varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo, e como os principais sacerdotes e as nossas autoridades o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel; mas, depois de tudo isto, é já este o terceiro dia desde que tais coisas sucederam.

Através deste verso, é notável que estes dois discípulos refletissem o tempo em que viviam na qual a maioria dos judeus daquela época interpretavam o Messias de uma forma particular para aquele momento da história.  A nação de Israel desejava a liberdade. Enquanto Jesus estava com eles, o povo judeu estava sobre o jugo do império romano. Um messias descendente do Rei Davi, que iria reconstruir a nação de Israel e restaurar o reino, seria de fato muito atrativo para aquele momento. Somando o retorno do cativeiro aliado aos eventos históricos, desenvolveu-se no povo judeu uma esperança na reconstrução da nação judaica e do governo de um rei selecionado pelo próprio Deus que submeteria todos os povos à legislação da Torá, uma esperança na “era messiânica” (PINHEIRO, 1975, p. 108).
Outro aspecto que influenciava em muito foi a confusa compreensão dos judeus em relação ao Messias, era, a quantidade de visões diferentes

As expectativas dos judeus em relação ao Messias, no tempo de Jesus, eram também muito nuançadas e, em certa medida, divergentes. Na verdade, temos várias indicações nas fontes existentes de que havia mais de um modelo de messias na relação de expectativas dos judeus. Eram vários os tipos de messias imaginados (SKARSAUNE, 2004, p. 314).

Será que houve alguma diferença entre o que eles esperavam e o que realmente o Jesus Nazareno tinha a oferecer? Percebemos no novo testamento que o foco de Jesus era espiritual, enquanto o foco dos principais era a restauração temporal e secular de Israel. A expectativa de Israel neste período de subjugação era a expectativa messiânica

O orgulho nacional manifestava-se ainda na esperança messiânica, talvez a mais característica e marcante da concepção religiosa hebraica. O messias surgiria para levar Israel a posição que, por direito, lhe cabia e para instaurar um reinado de paz e de prosperidade sobre a face da terra (PINHEIRO, 1975, p.70).

A escritora Ellen White comentando sobre este tópico ressalta que os líderes e principais compreendiam erroneamente as profecias messiânicas aplicando aspectos da restauração do reino à primeira vinda

Os dirigentes de Israel afirmavam compreender as profecias, mas haviam aceitado falsas ideias acerca da maneira da vinda de Cristo. Satanás os enganara; e todas as glórias do segundo advento de Cristo eram por eles aplicadas ao Seu primeiro aparecimento. Todos os maravilhosos acontecimentos agrupados em volta de Sua segunda vinda eram por eles aguardados em Sua primeira vinda. Por isso, quando Ele veio, não estavam preparados para recebê-Lo  (WHITE, 1992, p. 374).

É possível pensarmos que na conversa que os discípulos de Emaús tiveram, Jesus tenha discorrido também sobre sua própria missão de Cristo, o Ungido, como é apresentado em Lucas 24:25 a 27

Então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.

Sobre o que significa “expor o que consta a seu respeito”, é possível que Jesus possa ter começado com Gênesis 3:15, a primeira promessa do Redentor, seguindo o caminho percorrido por essa promessa ao longo de todas as Escrituras. É suposto que tenha gastado algum tempo falando de Gênesis 22, quando Abraão colocou o filho único e tão amado sobre o altar. Talvez, tenha falado da Páscoa, dos sacrifícios levíticos, das cerimônias no tabernáculo, do dia da expiação, da serpente no deserto, do Servo Sofredor em Isaías 53 e das mensagens proféticas de Salmos 22 e 69 (WIERSBE, 2006).
O verso 44 deste mesmo capítulo de Lucas nos dá um vislumbre de que provavelmente Jesus se referiu a “tudo que estava escrito sobre Ele e precisava se cumprir”, o que nos faz pensar sobre a visão messiânica apresentada na “lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (HENRY, 1939).
O presente artigo buscará compreender qual seria a visão messiânica que influenciou a vida destes dois discípulos. Como ela se construiu? Para este fim, será analisada as visões acerca do messias prometido de Israel que permeavam o período próximo a Cristo, com isto, é o alvo entender o contexto das expectativas messiânicas que norteavam a compreensão dos discípulos no caminho de Emaús visando ampliar também a compreensão da porção bíblica intitulada de Novo Testamento.
Ele seguirá os seguintes tópicos: O que são profecias Messiânicas; Contexto histórico para a formação da visão messiânica que os discípulos tinham; Conceitos messiânicos da época de Cristo; Por fim apresentar a razão e conclusão do porque os discípulos entendiam Cristo daquela forma.

O QUE SÃO PROFECIAS MESSIÂNICAS?

Para compreender-se a decepção dos discípulos de Emaús, é preciso analisar primeiro o que são profecias messiânicas ou o que é messianismo.
Conforme observa Moltmann

Messianism is the most profoundly original idea in Judaism”. Messianism is the idea which Israel gave the world. This is not merely one Old Testament idea among others: the Old Testament as a whole is the book of a continually growing expectation (MOLTMANN, 1990, p.2).

A partir desta perspectiva de que o messianismo é uma uma expectação crescente no Antigo Testamento, Ellen White ressalta que

A vinda do Salvador foi predita no Éden. Quando Adão e Eva ouviram pela primeira vez a promessa, aguardavam-lhe o pronto cumprimento. Saudaram alegremente seu primogênito, na esperança de que fosse o Libertador. Mas o cumprimento da promessa demorava. Aqueles que primeiro a receberam, morreram sem o ver. Desde os dias de Enoque, a promessa foi repetida por meio de patriarcas e profetas, mantendo viva a esperança de Seu aparecimento, e todavia Ele não vinha. A profecia de Daniel revelou o tempo de Seu advento, mas nem todos interpretavam corretamente a mensagem (WHITE, 2010, p. 31).

Conforme observa Pinheiro, os profetas tiveram papel crucial na formação do pensamento messiânico trazendo mensagens diretamente de Deus para o povo

Os profetas continuaram a fazer ouvir a sua voz e a anunciar as profecias que, da parte de Yahweh, recebiam. Eles começaram a predizer a vinda de um rei que descenderia de Davi, que seria o grande libertador do seu povo (Jeremias 23:5-6), sob cujo domínio haveria paz e harmonia (Isaías 11), cuja geração seria desde a eternidade (Miquéias 5:2-5) e que se sentaria sobre o trono de Davi para sempre (Isaias 9:6-7). A este, o grande libertador, já prometido desde tempos imemoriais e que os hebreus esperavam e cujos caracteres, progressivamente, iam sendo revelados pela palavra do seu Deus Yahweh, atribuíam os israelitas, por excelência, o título de messias que, assim, de ungido, passou a trazer subjacente, o significado e o valor de libertador (Daniel 9:25,26). Não apenas o libertador do povo israelita mas o libertador da raça humana caída (PINHEIRO, 1975, p.76).

Esta ideia progressiva do Messias está relacionada com restauração da nação de Israel, como libertador e também como pessoa e reino messiânico, a era messiânica e a terra messiânica, os sinais messiânicos e as pessoas messiânicas na história (MOLTMANN, 1990, p.2). Estes termos messiânicos aplicam-se a missão do Messias não ao seu ser

Em muitos textos do AT, a ênfase principal recai sobre as obras do Messias, e não sobre sua pessoa ou sobre seu ser. O messias completa sua obra messiânica libertando o povo de Deus, livrando-o de seus inimigos. Os outros títulos do Messias, especialmente Filho de Deus, também parecem referir-se, sobretudo, à sua obra, e não à essência do seu ser. Em suma, eles são funcionais e não ontológicos (SKAURSANE, 2004, p. 315).

No judaísmo, a esperança messiânica estava centralizada em torno de uma pessoa, embora também girasse em torno de certa condição nacional de Israel, que cumpriria os seus ideais e sonhos como nação. Portanto, por um lado, a esperança messiânica girava em torno do Messias, e, por outro lado, girava em torno de algo que pertencia à nação de Israel, quanto as suas futuras expectações. A esperança messiânica é a expectação de que haverá uma figura messiânica, que, finalmente, estabelecerá o seu reino messiânico.
A palavra messias deriva do hebraico mashia, equivalente ao grego christos, e significa “ungido” (PINHEIRO, 1975). Este Cristo, o ungido, é o Messias de Israel (MOLTMANN, 1990). Este termo é usada no Antigo Testamento para identificar uma pessoa em relação especial com Deus. O uso não técnico do termo é simplesmente designar ungido com óleo e com o Espírito Santo, mas especialmente um que tinha sido separado por Deus e habilitado para uma tarefa especial.
Este ungido é visto como

Visões messiânicas: messias como primogênito, como rei, como descendente de Davi, como profeta, como sacerdote, como renovo, como servo de Yahweh, como idêntico a Yahweh, como descendente da mulher e filho do homem (PINHEIRO, 1975, p.81 a 102).

A esperança messiânica é a expectação de que haverá uma figura messiânica, que, finalmente, estabelecerá o seu reino messiânico. O Antigo Testamento e as obras pseudepígrafas encerram em seu bojo essa antecipação. Ver Isaias 7:14 e Daniel 7, bem como a mensagem geral sobre os reinos deste mundo, de Daniel 9:24, Muitos dos salmos também são considerados messiânicos (Salmos 2 e 110). A teologia dos hebreus, após o exílio, aguardava a futura renovação de um imenso e exaltado reino de Israel, que haveria de emergir no reino de Deus, embora essa esperança não estivesse ligada claramente, com a figura messiânica. O trecho de Isaías 9:6 é uma das mais claras passagens vetero-testamentárias desse tipo, incluindo a ideia do Príncipe da paz que haveria de governar sentado no trono de Davi.
A ligação do termo "Messias", como aplicado a um rei ungido parece especialmente forte, e foi usado em um sentido profético da vinda governante Davídico. Ambos segundo Samuel e os Salmos se referem ao Rei Davi como o "ungido" (mashiach) cujos descendentes reinarão para sempre (2 Sam . 22:50-51, Sl . 18:50-51). Além disso, o conceito de um messias universal é visto em textos que dão para a casa de Davi domínio sobre as nações estrangeiras (2 Sam 22:44-51, Sl 18:44-51, Salmos 2:7-9 ) .
Nos escritos proféticos o conceito messiânico tem uma referência especial ao prometido governante davídico de Deus que vai restaurar Israel ao ideal divino (Isaías 09:07, Jeremias 23:5-6, Ezequiel 34:23-24; 37:25; Amós 9:11-12 ). Salmos 2 (vs. 2-6, 7-9) e 89 (vs. 3-4, 20-29) mostram um rei messias (ou "ungido"), que irá destruir os adversários gentios de Deus e como Seu representante reinará sobre as nações. O profeta Isaías pré-exílico também prevê um futuro Messias davídico que ferirá os inimigos do estado de Israel e fará justiça sobre as nações (Is 11:1-10).


CONTEXTO HISTÓRICO PARA A FORMAÇÃO DA VISÃO MESSIÂNICA DOS DISCÍPULOS NO PERÍODO INTERTESTAMENTÁRIO

Para compreender-se a visão dos discípulos de Emaús é necessário analisar o contexto histórico que antecedeu o período do ministério de Jesus, retrocedendo poucos séculos para trás.
O período que antecede o advento do Cristo conforme visão cristã é chamado de período intertestamentário, ou, período entre os dois testamentos.
A história do Antigo Testamento se encerrou com o cativeiro que a Assíria impôs ao reino do norte (Israel) por volta do século 8 a.C com destruição da capital, Samaria, em 722 a.C junto a isto o subsequente cativeiro babilônico do reino do sul (Judá) por volta do século 6 a.C com destruição de Jerusalém em 586 a.C. e com o regresso à Palestina de parte dos exilados para reconstruir a nação, o templo e Jerusalém, nos começos de 537 a.C e no ano de 444 a.C para reconstrução dos muros de Jerusalém sob liderança de Esdras e Neemias (PACKER, 2003).
Este período chamado de intertestamentário é o tempo que se inicia com o fim do Antigo Testamento até o momento que se inicia o Novo Testamento com o advento do Cristo. Em termos temporais, ele vai do século 4 a.C até século 1 d.C. O período entre os dois testamentos é conhecido como os quatro séculos que não existem registros de revelações proféticas consideradas canônicas, ou,  chamada também de “hiato profético” (GUNDRY, 1987) . O último escrito profético do Antigo Testamento é de Malaquias (PACKER, 2003).
Neste período de tempo, Israel voltava de seu cativeiro e reinicia sua busca de identidade e reconstrução como nação (BRIGHT, 1980). A questão é que sua busca de identidade e autonomia acabaram sendo influenciadas por potências militares, políticas e econômicas da época: os romanos e os gregos. Sendo influenciada também por insurreições internas em busca de liberdade conhecida por “Revolta dos Macabeus”.
A nação vivia sob jugo de exílio, até por volta do período do século quarto a.C. Deste tempo em diante a nação se acha em conflitos diferentes do que o exílio e falta de liberdade em si, mas precisa responder perguntas mais difíceis: como reerguer-se e existir com identidade de “povo de Deus”? Como não cair mais nos mesmos erros que levaram ao cativeiro? Como conciliar a falta de liberdade imposta pelos impérios dominantes com a consciência de deveres religiosos? Como resconstruir uma nação? (BRIGHT, 1978).
Neste tempo Israel busca alcançar resgatar sua identidade. Neste evento encontramos o surgimento do judaísmo. Israel via a si mesmo como uma comunidade visível que adoravam a Deus, participava de seu culto e confiava em suas promessas. A queda de Jerusalém trouxe um fim a tudo isto. Tendo as formas antigas desaparecido, Israel precisava encontrar algum elemento na sua herança em torno da qual reunir-se para sobreviver.
Seguindo a este momento a figura do messias, que seria a consumação dos desígnios divinos, se mistura com a figura de um libertador não sendo apresentado como um redentor manso e humilde (BRIGHT, 1978).
A busca de identidade acabou formando vários grupos do judaísmo, tais como os Macabeus, Saduceus, Fariseus, Zelotes e Essênios. Estes grupos não significavam uma divisão do Judaísmo em grupos apocalípticos, nacionalistas e legalistas, mas, uma divisão em maneiras de interpretar a lei, divisões dentro da estrutura da religião comum, porém, sem linhas nítidas e firmes. Não havia, porém, um consenso com respeito do que deveria ser Israel e qual direção tomaria o seu futuro.
Dentro do judaísmo, além do legalismo, havia também o conceito do Messias. Ele refere-se, principalmente, à profecia da vinda de um humano descendente do Rei David, que iria reconstruir a nação de Israel e restaurar o reino de David, trazendo desta forma a paz ao mundo. Ainda que a tradição religiosa judaico-cristã diga que o Messias já era uma profecia predita desde os tempos dos Patriarcas, este ensino veio a tomar forma após a destruição de Jerusalém. O retorno do Cativeiro aliado à eventos históricos como a história dos Macabeus serviu para desenvolver no povo judeu uma esperança na reconstrução da nação Judaica e do governo de um rei selecionado por Deus que submeteria todos os povos à legislação da Torá.
Os Macabeus lideraram Israel da dominação estrangeira. Infelizmente, porém, não demorou para que Roma pusesse fim à liberdade deles. Os judeus começaram a anelar por uma figura que renovasse e até mesmo ultrapassasse a glória trazida pelos Macabeus. Por isso o Messias foi assumindo dimensões cada vez maiores na mente da nação. Ele haveria de ser o Filho de Davi, inigualavelmente dotado, e que haveria de restaurar a nação de Israel, levando-a a ser a cabeça de um reino universal. Ele também será o Filho de Deus, o personagem celeste que traria aos judeus a salvação e seria o mediador de uma nova mensagem da parte de Deus.
Veio à tona a ideia da era áurea. O livro de Jubileus menciona, especificamente, os mil anos, e I Enoque refere-se a uma era áurea de trezentos anos. As expectações foram-se intensificando, à medida que a nação de Israel aproximou-se dos seus cinco mil anos do calendário da criação. As crenças populares afirmavam que seria então inaugurado o período do milênio. Esse período seria um tempo de justiça, paz, bênção e grandeza universal. Foi em meio dessas grandiosas expectações que nasceu Jesus, o Cristo.
Parece que o retorno a Judá depois do exílio e do restabelecimento da dinastia davídica quebrado pelo cativeiro babilônico (Zc 4:7-10), foram inicialmente consideradas não só uma restauração nacional (Ezequiel 36: 24; 37:12), mas como um prelúdio para o advento messiânico esperado que daria início a restauração espiritual (Malaquias 4:5-6; cf Ez. 36:25-27; 37:14) . No entanto, apesar dos esforços dos sacerdotes "ungidos" e profetas, bem como governantes estrangeiros "ungidos" que ajudaram o retorno e reconstrução (Ciro: Isaías 44:28-45:13; Esdras 1:1-11), a comunidade pós-exílio veio a perceber que os ideais proféticos de restauração não tinham sido cumpridas e que restauração espiritual e o prometido "Ungido" ainda estava no futuro.
Esta esperança messiânica veio a agravar-se com o Domínio Romano sobre a Judéia no primeiro século. As diversas ramificações judaicas pacíficas ou revolucionárias pretendiam obter sua independência do domínio romano e inspirados pelo ideal da independência acabaram por desenvolver ainda mais a crença no Messias libertador.
O fracasso da comunidade pós-exílico para experimentar restauração, juntamente com uma crescente deserção espiritual entre os líderes sacerdotais, exemplificada por Alexander Jannaeus (103-76 aC), adquirindo o título de rei, além de que de sumo sacerdote e da imposição de uma helenismo cultural, provocou o desejo sincero em partidos adversários (como os fariseus e da seita de Qumran) por um enviado de Deus ("ungido") Rei e Sacerdote para restaurar a ordem legítima (monarquia davídica e Zadokite sacerdócio).
Estimulados pelas condições religiosas e políticas opressivas, esta esperança messiânica durante o período intertestamentário expressou-se no final de Judaísmo do Segundo Templo através de um desenvolvimento do conceito profético da libertação messiânica na era escatológica. Literatura apocalíptica- apócrifa e pseudoepigrafa judaica desse período contêm referências explícitas ao Messias que vai aparecer no final da época para travar as guerras messiânicas, derrotar os adversários de Israel, restaurar a nação e sacerdócio, e pronunciar-se sobre uma escala universal.
Para compreendermos os conceitos messiânicos que permeavam o período de Cristo e poderiam ter influenciado os discípulos é imprescindível que não podemos desprezar o NT como fonte importante do messianismo judaico.
Considerando então o NT como fonte para tal compreensão, percebe-se que, como frisa Ellen White

O enfraquecido poder de Israel testemunhava que a vinda do Messias estava às portas. A profecia de Daniel pintava a glória do Seu reino sobre um domínio que sucederia a todos os impérios terrestres; e disse o profeta: "subsistirá para sempre". Dan. 2:44. Ao passo que poucos entendiam a natureza da missão de Cristo, era geral a expectativa de um poderoso príncipe que havia de estabelecer seu reino em Israel, e que viria como um libertador para as nações  (WHITE, 2010, p.34).

Vendo que havia a espera e o interesse no messias, Skarsaune diz que os judeus preocupavam-se apenas com o segundo advento messiânico, porque parecia com maior clareza nas profecias e era tido como mais digno do Messias. Eles ignoravam o primeiro advento proclamado pelos profetas, por causa da grande obscuridade das profecias, e pelo fato de ser tão indigno do Messias (FERGUNSON, 2003).
Além de ser um momento de expectativa messiânica havia uma diversidade de posições
As expectativas dos judeus em relação ao Messias, no tempo de Jesus, eram também muito nuançadas e, em certa medida, divergentes. Na verdade, temos várias indicações nas fontes existentes de que havia mais de um modelo de messias na relação de expectativas dos judeus. Eram vários os tipos de messias imaginados. Em Qumran, por exemplo, esperava-se um messias de Israel e um messias de Aarão. Encontramos nas fontes rabínicas outras duas espécies de messias, provavelmente calcadas em Gênesis 49 e deuteronômio 33, em que tanto Judá quanto José são chamados de líderes de seus irmãos. De modo análogo ao duplo reino posterior à época de Salomão, essa ideia volta com frequência aos textos rabínicos com os dois messias de Davi e Efraim: o primeiro, vitorioso, o segundo, morrendo no campo de batalha. É difícil saber ao certo se esse conceito já era bem conhecido nos dias do NT ou se foi desenvolvido mais tarde – por exemplo durante o século d.C. (SKARSAUNE, 2004, p. 314).

Existem várias tradições do messianismo no judaísmo, incluindo escritos rabínicos, os pergaminhos do Mar Morto e outros textos extra-bíblica e escritos exegéticos bíblicos internos. Nos escritos rabínicos são cerca de 450 passagens do Antigo Testamento separadas insinuando o Messias, um número um pouco inflacionados devido à exegese alegórica que marcou o judaísmo do primeiro século. Nos pergaminhos de Qumran, há uma diversidade de interpretações messiânicas e na tradição exegética bíblica interior encontramos referências internas a figuras e acontecimentos messiânicos. (EUGEN, 2002)
Os manuscritos de Qumran indicam uma maior diversidade de expectativas messiânicas do judaísmo em torno da volta da era. Não é encontrado nos textos de Qumran nenhuma evidência de uma exegese sistemática, uniforme do Antigo Testamento. Isso não quer dizer que não havia tradições fixas em tudo, ao contrário, indica a diversidade de abordagens para a expectativa messiânica e cumprimento escatológico. Isaías 11, por exemplo, é tratado como um texto messiânico, tanto em Qumran e fora dele Salmos de Salomão, e encontramos nestes pergaminhos várias referências a figuras messiânicas: (1) o escatológico Sumo Sacerdote, ou o messias de Aarão, que aparece em destaque; (2) o profeta escatológico; e (3) o Messias celestial ou "Filho do Homem". Há alguma indicação, por exemplo, na Regra da Comunidade , que o Messias foi compreendido , mesmo neste período, como filho de Deus: "Quando Deus gera o Messias entre eles” (IQS 2:11-12). (EUGEN , 2002)
Além das variadas posições, Ellen White indica que haviam também pessoas que aguardavam o messias segundo a tradição cristã

Havia entre os judeus ainda algumas almas firmes, descendentes daquela santa linhagem através da qual fora conservado o conhecimento de Deus. Estes acalentavam a esperança da promessa feita aos pais. Fortaleciam a fé repousando na certeza dada por intermédio de Moisés: "O Senhor vosso Deus vos suscitará um profeta dentre vossos irmãos, semelhante a mim: a Este ouvireis em tudo que vos disser." Atos 3:22. E novamente liam como o Senhor havia de ungir Alguém "para pregar boas novas aos mansos", "restaurar os contritos de coração", "proclamar liberdade aos cativos", e apregoar "o ano aceitável do Senhor". Isa. 61:1 e 2. Liam como Ele havia de estabelecer "a justiça sobre a Terra", como as ilhas aguardariam a "Sua doutrina", (Isa. 42:4) como os gentios andariam à Sua luz, e os reis ao resplendor que Lhe nascera. Isa. 60:3. As derradeiras palavras de Jacó os enchiam de esperança: "O cetro não se arredará de Judá, nem o legislador dentre seus pés, até que venha Siló." Gên. 49:10 (WHITE, 2010, P. 34).

CONCLUSÂO: PORQUE OS DISCÍPULOS VIAM JESUS DAQUELA FORMA?

A questão então do desapontamento dos discípulos já pode ser melhor compreendida. A partir dos raciocínios anteriores, percebe-se que a era messiânica e a restauração de todas as coisas em Israel era uma linha de pensamento corrente na época do ministério de Jesus. O ponto é, os discípulos esperavam algo de temporal de Jesus

 O messias será aquele que reinará durante o que chamamos de era messiânica, não há outra definição possível. Portanto, o critério básico de avaliação do messias será dado por uma pergunta simples: Ele trouxa consigo a era messiânica? Toda e qualquer referência ao Messias só faz sentido no contexto dessa pergunta. O que diz a bíblia sobre a era messiânica? Eis uma breve descrição feita por um renomado especialista cristão: “A retomada da independência e do poder, uma era de paz e de prosperidade, de fidelidade a Deus e à sua lei, de justiça e equidade, de amor fraternal entre os homens e de retidão e piedade pessoais”. Se pensarmos um pouco nessa frase à luz da história dos últimos dois mil anos, veremos que são muitos e enormes obstáculos que se colocam à missão messiânica de Jesus. Se Jesus era o Messias, por que o mal e o sofrimento continuaram a existir e até mesmo recrudesceram nos muitos séculos desde a sua morte (SKARSAUNE, 2004, p.312)?

Por este prisma, este mesmo autor ressalta que, em certo sentido, a primeira vinda de Jesus não foi messiânica no sentido rigoroso da palavra porque a obra messiânica era definida com base em profecias que fazem referência a restauração das coisas externas tais como paz, justiça, restauração.  Desta forma é a segunda vinda, e não a primeira, que devemos caracterizar como messiânica.
Foi mostrado na introdução deste artigo que quando Jesus se apresentou aos discípulos ele fez uma repreensão à decepção deles acerca daquele em quem esperavam ser o restaurador presente de todas as coisas.
Fica evidente pelo testemunho do NT e da história que o Reino é entendido como algo ainda futuro, e que a passagem do Messias pelo sofrimento e pela morte é considerada uma espécie de preparação necessária para o estabelecimento do reino, coisa que os discípulos não conseguiam aprender ou assimilar. 
Concluindo, assume-se que os discípulos apenas refletiam sua época em que a nação além da confiança em Deus, esperava se reestabelecer conforme predições do AT, porém, predições estas que devem ser aplicadas à consumação das coisas. Foi tudo uma questão de compreensão certa para o momento errado.


 ___________________


REFERÊNCIAS

BRIGHT, John. História de Israel. 2. ed. São Paulo - SP: Edições Paulinas, 1978.

CAIRNS, E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. 2. ed. São Paulo - SP: Vida Nova, 1995.

Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia v.2. Russel Norman Champlin e João Marques Bentes. São Paulo: Candeia, 1995.

Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia v.4. Russel Norman Champlin e João Marques Bentes. São Paulo: Candeia, 1995.

EUGEN, Pentiuc J. The Christological Interpretation of the Old Testament: A critical review. Greek Orthodox THeological Review; Spring-Winter 2002, Vol. 47 1- 4 Issue 1-4 p.37 - 54. Academic Journal.

FERGUSON, E. Backgrounds of early christianity. 3. ed. Grand Rapids - EUA: William B. Eerdmans Publishing Company, 2003.

GUNDRY, R. H. Panorama do Novo Testamento. Tradução de João Marques Bentes. 4. ed. São Paulo - SP: Vida Nova, 1987.

HENRY, Matthew ; Scott, Thomas: Matthew Henry's Concise Commentary on the Bible. Sociedade Bíblica do Brasil, 1939; 2007, S. Lc 24:13

JUDAÍSMO MESSIÂNICO. Disponível em: < http://goo.gl/7ijTmU > Acesso em: 01 de maio 2014.

KLAUSNER, Joseph. The messianic idea in Israel: from its begining to the completion of the Mishnah. LONDON: Allen & Unwin, 1956.

MOLTMANN, Jurgen. The Way of Jesus Christ: christology in messianic dimensions. 1. ed. Estados Unidos da América: Harper San Francisco, 1990. ISBN 0-06-065910-6.

OLD TESTAMENT AND SECOND-TEMPLE MESSIANIC EXPECTATION. Disponível em: < http://goo.gl/8l2W0A >. Acesso em: 01 de maio de 2014.

PACKER, J.I.; TENNEY, M. G.; WHITE, W.J. O Mundo do Novo Testamento. 1. ed. São Paulo - SP: Vida , 2003.

PINHEIRO, Jorge. O Messianismo. 2. ed. Lisboa - Portugal: Editora dos Adventistas do Sétimo Dia, 1975. v. 1.

PRICE, Randall. The concept of the Messiah in the old Testament. Disponível em: < http://goo.gl/YJtP4m >. Acesso em: 30 de abril de 2014.

 Salvo indicação contrária, todas as referências bíblicas neste texto são da:
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. A Bíblia Sagrada. Revista e Atualizada no Brasil. 2° ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

SKARSAUNE, Oskar. À sombra do templo: as influências do judaísmo no cristianismo primitivo. São Paulo: Editora Vida, 2004.

THE RELIGIOUS WORLD OF JESUS. Disponível em: < http://goo.gl/qYlQCn > Acesso em:11 de maio de 2014.

THE SON OF GOD AND MESSIAH IN THE OLD TESTAMENT. Disponível em: < http://goo.gl/pKQiwy > Acesso em: 11 maio de 2014.
TIME LINE OF ISRAEL. Disponível em: < http://goo.gl/RaLg1I > Acesso em: 7 de maio de 2014.

WHITE, Ellen. Exaltai-O. P. 374. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira: 1992.

WHITE, Ellen. O desejado de todas as nações. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira: 2010.

WHITE, Ellen. Profetas e Reis. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira: 2012.

WIERSBE, Warren. Comentário Bíblico Expositivo, Pentateuco. Santo André: Geográfica Editora, 2006.